Todos nós já fomos em festas; alguns mais, outros menos. Aniversários, Comunhões, Formaturas, Casamentos, Festas Juninas, Churrascos entre amigos ou família, bailes ou baladas.
As sensações vão se somando, influenciando nosso humor, quase sempre no sentido da alegria, da diversão, do encanto. Chega um momento, especialmente os que bebem, que já não sabem ao certo quem são, onde estão, por que estão, ou o que será deles dali pra frente.
Poucos de nós temos a sensibilidade de notar essas sensações: cores, cheiros, sons, luzes, conversas, palavras, sabores e outras influências que performam os ingredientes que fazem com que cada festa seja única.
A autora Virgínia Woolf escreveu um conto com essa sequência de cenas de uma noite de festa, que a princípio parecem sem sentido, mas que, se refletirmos, não são muito diferentes das nossas noites de festa.
Pois que uma festa torna as coisas, pensou, ou muito mais ou muito menos reais; (O vestido novo)
Noite de Festa – Conto de Virgínia Woolf
Ah, mas vamos esperar um pouco! — A lua está no alto; o céu, aberto; e lá, erguendo-se numa elevação contra o céu, com árvores por cima, está a terra. As nuvens prateadas e fluidas contemplam ondas do Atlântico. Na esquina da rua, o vento sopra de leve e me levanta o casaco, estendendo-o delicadamente no ar antes de o deixar curvar-se e cair, como o mar que agora engrossa para rebentar nos rochedos e depois se afasta de novo. — A rua está quase vazia; as venezianas das janelas estão fechadas; as vidraças amarelas e vermelhas dos navios lançam por um momento um reflexo sobre o azul flutuante. Doce é o ar da noite. As criadas deixam-se ficar ao redor da caixa de correio ou namoram na sombra da parede onde a árvore derrama sua chuvarada escura de flores. Tal como na casca da macieira as mariposas tremem sugando açúcar pelo longo filamento negro da probóscide. Onde estamos? Que casa pode ser a casa da festa? Todas essas são pouco comunicativas, com suas janelas cor-de-rosa e amarelas. Ah — dobrando a esquina, ali no meio, lá onde a porta está aberta —, espere um momento. Vamos observar as pessoas, uma, duas, três, que se precipitam na luz como as mariposas vão de encontro ao vidro de uma lanterna que ficou no chão da floresta. Eis um táxi que passa depressa para o mesmo local. Dele desce uma dama volumosa e pálida, que entra na casa; um senhor vestido para a noite, em preto e branco, paga ao chofer e a segue, como se ele também estivesse muito apressado. Venha, porque senão nos atrasamos.
Sobre todas as cadeiras há almofadinhas macias; nesgas tênues de gaze enroscam-se por sobre sedas brilhantes; velas vertem chamas periformes nos dois lados do espelho oval; há escovas de fino casco de tartaruga; frascos talhados com lavores de prata. Pode isto ter sempre esta aparência — não é isto a essência — o espírito? Alguma coisa dissolveu meu rosto. Coisa que aliás mal aparece em meio à névoa prateada da luz das velas. Pessoas passam por mim sem me ver. Como têm rostos, as estrelas parecem cintilar em seus rostos, através da rósea coloração da carne. A sala está repleta de figuras vívidas, contudo insubstanciais, que se postam eretas à frente de prateleiras listadas por inumeráveis volumezinhos; cabeças e ombros maculam quinas de molduras quadradas com douração; e a massa de seus corpos, lisos como estátuas de pedra, conglutina-se contra uma coisa cinzenta, tumultuosa, brilhante também, como que tendo água dentro, além das janelas sem cortinas. “Venha para o canto e vamos conversar.”
“Maravilhosos! Maravilhosos seres humanos! Espiritualizados e maravilhosos!”
“Porém eles não existem. Você não está vendo o lago, pela cabeça do Professor? Não está vendo o cisne nadar, pela saia de Mary?”
“Posso imaginar umas rosinhas de fogo espalhadas em torno deles.”
“As rosinhas de fogo não são senão como os vaga-lumes que vimos juntos em Florença dispersos pela glicínia, átomos flutuantes de fogo, que vão queimando enquanto voam — queimando, não pensando.”
“Queimando, não pensando. E assim todos os livros por trás de nós. Aqui está Shelley — aqui está Blake. Basta jogá-los no ar para ver seus poemas descerem como paraquedas dourados que rodopiam e brilham e vão deixando cair sua chuva de florações em forma de estrelas.”
“Quer que eu lhe cite Shelley? ‘Vamos! faz escuro no matagal sob a lua…’”
“Espere, espere! Não condense nossa atmosfera tão fina em gotas de chuva salpicando a calçada. Vamos respirar mais um pouco no pó de fogo.”
“Vaga-lumes na glicínia.”
“Bem cruel, reconheço; mas veja como as grandes floradas surgem diante de nós; vastos candelabros de ouro e roxo fosco pendentes dos céus. Você não sente como a bela douradura nos tinge as coxas, quando entramos, e como as paredes cor de ardósia oscilam pegajosamente sobre nós, quando nos arremessamos, cada vez mais fundo, pelas pétalas, ou então se esticam como tambores?”
“O professor se agiganta sobre nós.”
“Diga-nos, Professor…”
“Madame?”
“Em sua opinião é necessário escrever gramáticas? E a pontuação? A questão das vírgulas de Shelley interessa-me profundamente.”
“Vamos sentar. Para dizer a verdade abrir janelas após o pôr-do-sol — eu de pé com as minhas costas — conversa todavia agradável — Sua pergunta, sobre as vírgulas de Shelley. Questão de certa importância. Ali, um pouco para a sua direita. A edição da Oxford. Meus óculos! O castigo dos trajes de noite! Não me aventuro a ler… Além do mais vírgulas… O tipo moderno é execrável. Concebido para corresponder à exiguidade moderna; pois eu confesso que encontro pouco de admirável nos modernos.”
“Nisso eu concordo inteiramente com o senhor.”
“Ah, é? Pois eu temia oposição. Na sua idade, nos seus — trajes.”
“Professor, eu encontro pouco de admirável nos antigos. Estes clássicos — Shelley, Keats; Browne; Gibbon; haverá uma página que o senhor possa citar inteira, um parágrafo perfeito, uma frase mesmo que não se possa ver emendada pela pena de Deus ou do homem?”
“Xi, Madame! Sua objeção tem peso, mas falta-lhe sobriedade. Além do mais a sua escolha de nomes… Em que câmara do espírito pode a senhora consorciar Shelley e Gibbon? A não ser de fato pelo ateísmo de ambos — Mas vamos ao ponto. O parágrafo perfeito, a frase perfeita; hum! — minha memória — e depois meus óculos, que eu larguei lá por trás, no parapeito da lareira. Garanto. Mas a sua crítica aplica-se à própria vida.”
“Certamente esta noite…”
“A pena do homem, imagino, poderia ter pouco trabalho para reescrever isso. A janela aberta — de pé na corrente de ar — e, permitam-me sussurrá-lo, a conversa destas senhoras, compenetradas e benevolentes, com opiniões exaltadas sobre o destino do negro que está neste momento mourejando sob chicote para extrair borracha para alguns dos nossos amigos envolvidos em amenas conversações aqui. Para desfrutar da perfeição da senhora…”
“Concordo com o senhor. Há que excluir.”
“A maior parte de tudo.”
“Mas, para demonstrar corretamente isso, temos de descer à raiz das coisas; pois temo que sua crença seja apenas um desses amores-perfeitos que são comprados e plantados para uma noite de festa e de manhã já estão murchos. O senhor mantém a exclusão de Shakespeare?”
“Madame, eu não mantenho nada. Estas senhoras me deixaram fora de mim.”
“São mulheres benevolentes, que armaram seu acampamento à margem de um dos riachos tributários de onde, colhendo ali caniços para flechas e mergulhando-os bem em veneno, com o cabelo entrançado e a pele pintada de amarelo, elas saem de vez em quando para plantá-los nos flancos do conforto; tais são as mulheres benevolentes.”
“Os dardos que elas atiram ardem. Isso, somado ao reumatismo…”
“O professor já se foi? Coitado do velho!”
“Mas, na idade dele, como ainda poderia ter o que, na nossa, nós já estamos perdendo? Quero dizer…”
“O quê?”
“Você não se lembra, bem na infância, quando, em conversa ou brincadeira, se a gente pisava no atoleiro ou alcançava uma janela ao cair, uma espécie de choque imperceptível congelava o universo numa sólida bola de cristal que se tinha um instante em mãos? Tenho certa crença mística de que todo o tempo passado e o futuro também, as lágrimas e cinzas das gerações, coagularam-se numa bola; éramos então absolutos e inteiros; nada então era excluído; e uma coisa era certa — felicidade. Mais tarde porém, quando a gente os segura, esses globos de cristal se dissolvem: há alguém falando sobre negros. Vê no que dá tentar dizer o que se tem em mente? Em contrassenso.”
“Precisamente. Porém que coisa triste é o bom senso! Que vasta renúncia ele representa! Ouça um instante. Distinga uma das vozes. Agora. ‘Tão frio deve parecer depois da Índia. Sete anos também. Mas o hábito é tudo.’ Isso é bom senso. É acordo tácito. Todos fixaram os olhos em alguma coisa visível para cada um. Não tentam mais olhar para a centelha de luz, a pequena sombra roxa que pode ser terra fértil no horizonte, ou apenas um brilho esvoaçante na água. É tudo compromisso — tudo segurança, o modo mais comum de relações entre seres humanos. Por isso não descobrimos nada; nós paramos de explorar; paramos de acreditar que há alguma coisa para descobrir. ‘Contrassenso’, você diz; querendo dizer que eu não verei seu globo de cristal; e me envergonho um pouco de o tentar.”
“A fala é uma rede velha e rasgada, pela qual os peixes escapam quando é jogada neles. O silêncio talvez seja melhor. Venha até a janela, vamos tentar.”
“Coisa estranha é o silêncio. A mente se torna como uma noite sem estrelas; mas de repente um meteoro desliza, esplêndido, atravessando a escuridão, e se extingue. Por essa diversão, nunca dizemos suficientemente obrigado.”
“Ah, somos uma raça ingrata! Quando olho para minha mão no peitoril da janela e penso no prazer que ela já me deu, como tocou em seda e cerâmica, em paredes quentes, como se espalmou na grama úmida ou banhada de sol, deixou o Atlântico esguichar por seus dedos, apoderou-se de jacintos e narcisos, colheu ameixas maduras, nunca por um segundo desde que eu nasci deixou de me falar de quente e frio, molhado ou seco, espanta-me que eu use esta maravilhosa composição de carne e nervos para escrever invectivas à vida. No entanto é isso o que fazemos. Pense bem a esse respeito, a literatura é o registro do nosso descontentamento.”
“Nossa insígnia de superioridade; nossa ambição de honrarias. Você há de admitir que gosta mais das pessoas descontentes.”
“Gosto do som melancólico do mar distante.”
“Que história é essa de falar de melancolia em minha festa? É claro que, se vocês ficarem cochichando num canto… Mas venham e deixem-me apresentá-las. Este é Mr. Nevill, que aprecia seus escritos.”
“Nesse caso — boa noite.”
“Nalgum lugar, esqueci o nome do jornal — qualquer coisa de sua autoria — esqueço agora o título do artigo — ou era um conto? Você escreve contos? Não é poesia que você escreve? São tantos os amigos da gente, e depois todo dia está saindo alguma coisa que… que…”
“Que a gente não lê.”
“Bem, para ser honesto, por desagradável que possa parecer, ocupado como estou o dia todo com assuntos de natureza odiosa, ou melhor, fatigante — o tempo que eu tenho para a literatura eu dedico a…”
“Aos mortos.”
“Detecto ironia na sua correção.”
“Inveja, não ironia. A morte é da maior importância. Como os franceses, os mortos escrevem muito bem, e, por alguma razão, podemos respeitá-los e sentir, enquanto iguais, que são mais velhos e sábios, como nossos pais; o relacionamento entre vivos e mortos é certamente dos mais nobres.”
“Ah, se você pensa assim, vamos falar dos mortos. Lamb, Sófocles, de Quincey, Sir Thomas Browne.”
“Sir Walter Scott, Milton, Marlowe.”
“Pater, Tennyson.”
“Agora, agora, agora.”
“Tennyson, Pater.”
“Feche a porta; puxe as cortinas para que eu veja apenas seus olhos. Eu me ponho de joelhos. Cubro o rosto com as mãos. Adoro Pater. Venero Tennyson.”
“Prossiga, filha.”
“É fácil confessar nossos erros. Mas que escuridão é tão fechada para ocultar nossas virtudes? Eu amo, adoro — não, não consigo lhe dizer como minha alma é uma rosa de devoção por — o nome treme em meus lábios — Shakespeare.”
“Concedo-lhe absolvição.”
“No entanto, com que frequência se lê Shakespeare?”
“Com que frequência é a noite de verão impecável, a lua perfeita, os espaços entre as estrelas profundos como o Atlântico? Com que frequência as rosas mostram branco no escuro? Amente, antes de ler Shakespeare…”
“A noite de verão. Oh, isto sim é que é maneira de ler!”
“Rosas que ondulam…”
“Ondas quebrando…”
“Ares singulares da aurora vindos pelos campos afora para forçar as portas da casa sem surtir efeito…”
“Deitando então para dormir, a cama é…”
“Um barco! Um barco! A noite inteira no mar…”
“Com estrelas que se postam a prumo…”
“E lá no meio do oceano nosso barquinho flutuando sozinho, isolado mas sustentado, atraído pela compulsão das luzes nórdicas, seguro, cercado, dissipa-se onde a noite repousa sobre a água; lá diminui e desaparece, e nós, já submersos, lacrados na frieza das pedras lisas, abrimos nossos olhos de novo; traço, batida, ponto, salpico, mobília de quarto, e a barulhada da cortina no trilho. — Eu ganho a vida. — Apresente-me! Oh, ele conheceu o meu irmão em Oxford.”
“E você também. Venha para o meio da sala. Tem alguém aqui que se lembra de você.”
“Em criança, querida. Você usava um vestidinho cor-de-rosa.”
“O cachorro me mordeu.”
“Ficar jogando paus no mar, já pensou que perigo? Mas sua mãe…”
“Na praia, na barraca…”
“Sorria sentada. Ela adorava cachorros. — Você conhece a minha filha? Este é o marido dela. — Era Tray que ele chamava? o grande, o amarronzado, porque havia um outro, o menor, que mordeu o carteiro. Posso ver isso agora. Ah, as coisas de que a gente se lembra! Mas estou impedindo…”
“Oh, por favor (Sim, sim, eu escrevi, estou indo). Por favor, por favor. — Pro inferno, Helen, interrompendo! E lá vai ela, nunca mais — abrindo caminho entre as pessoas, ajeitando seu xale, descendo lentamente os degraus: foi-se! O passado! o passado!…”
“Ah, mas ouça. Diga-me; estou com medo; tantos estranhos; alguns barbudos; outros tão bonitos; ela esbarrou na peônia; caíram todas as pétalas. E feroz — a mulher com aqueles olhos. Os armênios morreram. E os trabalhos forçados. Por quê? Tanta tagarelice também; a não ser agora — cochichos — todos nós devemos cochichar — nós estamos ouvindo — esperando — mas então o quê? A lanterna acender! Cuidado com sua gaze! Certa vez uma mulher morreu. Dizem que isso acordou o cisne.”
“Helen está com medo. Essas lanternas de papel acendendo e as janelas abertas deixando a brisa entrar levantam nossos babados. Mas eu não estou com medo das chamas, sabe. É o jardim — quero dizer, o mundo. Que me assusta. Aquelas pequenas luzes lá longe, cada qual com um círculo de terra por baixo — cidades e morros; e depois as sombras; os movimentos do lilás. Não fique conversando. Vamos sair. Pelo jardim; sua mão na minha.”
“Vamos. Faz escuro no matagal sob a lua. Vamos, haveremos de enfrentá- las, essas ondas de escuridão coroadas pelas árvores, que se erguem para sempre, solitárias, trevosas. As luzes se levantam e caem; a água é rala como o ar; por trás dela está a lua. Você afunda? Ou você se levanta? Você enxerga as ilhas? Sozinha comigo.”
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