Trecho do magnífico Madame Bovary, de Gustave Flaubert (grifos e  parênteses explicativos meus):

Sonhadora

Sonhadora

Mas como desembaraçar-se (de seu amante)? Além disso, por mais que a humilhasse a baixeza de tal ventura (a traição), estava presa a ela pelo hábito ou por corrupção; e a cada dia se lhe agarrava mais, exaurindo toda a felicidade à força de a querer muito grande. Acusava Léon (o amante) das suas esperanças malogradas, como se ele a tivesse atraiçoado; e desejava até uma catástrofe que trouxesse consigo a separação, visto não ter ela a coragem de se decidir.

Nem por isso deixou de continuar a escrever-lhe cartas amorosas, obedecendo à idéia de que uma mulher deve sempre escrever ao amante.

Mas, ao escrever, tinha no espírito outro homem, um fantasma composto das suas mais ardentes lembranças, das suas leituras mais belas, das suas mais fortes ansiedades; e afinal este se tornava tão verdadeiro e acessível, que Ema palpitava por ele, maravilhada, sem contudo poder imaginá-lo claramente, tanto ele se perdia, como um Deus, na abundância dos atributos. Habitava na região azulada em que as escadas de seda se balouçam pendentes dos balcões, ao aroma das flores e ao luar. Sentia-o junto de si, ia aparecer-lhe e arrebatá-la toda em um beijo. Depois sofria uma grande queda e tudo se despedaçava; porque aqueles impulsos de amor vago a fatigavam mais que a lascívia da libertinagem.

O trecho acima descreve como Ema, a Sra. Bovary, lidava a certa altura com o tédio e a frustração em relação à figura de seu amante Léon. Resumindo, a realidade nunca batia com sua intensa imaginação quando distante dele.

Creio que todo apaixonado já se confrontou com uma realidade um tanto menos atraente ao encontrar o ser amado depois de algum tempo.

Para nossa paixão idealizadora, somos inaceitavelmente imperfeitos.

Pior para nossa paixão.

Porém tal fenômeno da imaginação subsiste sob qualquer tema da vida. Em nossa imaginação, tudo é melhor, mais vívido, perfeito; todo contraste é mais intenso, todo sentimento é deliciosamente saboreado.

E a realidade, todos deveríamos ter sempre em mente, nunca é tão linda, tão intensa, tão romântica.

A realidade é imperfeição, interrompida esporadicamente por nossos sonhos de imaginosa perfeição.