Uma caça aos mitos
Para o alívio de muitos e a tristeza de outros – que prefeririam que ele existisse – me parece que não, o diabo não existe.
Resumidamente, o diabo, da maneira como as igrejas apresentam, simplesmente não existe. É uma invenção para amedrontar as pessoas, para que não abandonem a igreja, e pararem de obedecer aos pastores e padres.
O bicho-papão não serve para assustar e controlar as crianças? Pois então, o diabo é o bicho-papão dos adultos, e serve para assustá-los e controlá-los, sempre através do medo.
A única coisa que EXISTE é uma enorme confusão sobre esta entidade MITOLÓGICA.
Um dos maiores problemas bíblicos é o das traduções e cópias manuais. Tendo a Bíblia passado por várias traduções e cópias até chegar na versão conhecida atualmente, muitos equívocos aconteceram, a maioria involuntariamente. Alguns sentidos originais das palavras se perderam e outros sentidos se sobrepuseram, levando a interpretações distantes do sentido originalmente desejado. E muita dessa confusão está entre as figuras de Lúcifer, Diabo, Satanás e Demônio.
A alegoria do diabo como conhecemos hoje apareceu durante o surgimento do cristianismo, como consequência da tiranização pela igreja de deuses pagãos amplamente conhecidos e cultuados. O mais inusitado deles era Pã, deus dos bosques, dos campos, dos rebanhos e dos pastores na mitologia grega. Os romanos chamavam-no de Fauno. Veja a semelhança de Pã, ao lado, com o cramulhão. Só faltou o rabo com ponta-de-flecha e um sorrisinho maléfico 🙂
Num mundo em que as pessoas comuns viviam em paz cultuando seus deuses, uma igreja ainda em formação sedenta por seguidores precisou utilizar de artifícios para atraí-los. Um desses artifícios foi associar os deuses pagãos ao mal.
Os vários nomes do “coisa ruim”
Boa parte do texto que segue é embasado na Wikipedia, e está recheado com bastante opinião pessoal 🙂 Quem quiser se aprofundar, é só clicar nos links em meio ao texto.
“Lúcifer”, um anjo mítico
“Lúcifer” é uma palavra do latim lucem ferre quer dizer “portador de luz” (pois é) e foi o nome dado ao anjo caído da ordem dos Querubins, como descrito no texto do livro bíblico de Ezequiel, capítulo 28.
Representa também a estrela da manhã, ou estrela matutina, a estrela D’Alva, isto é, o planeta Vênus.
Lembrando que o próprio Cristo, no versículo 16 do capítulo 23 do Apocalipse chama a si mesmo de “Estrela da Manhã”.
Muitos exegetas afirmam que não existe fundamentação bíblica para identificar Lúcifer como o Satã tentador. Esta confusão com Satã foi ocasionada por uma má interpretação de Isaías 14:12-15:
“Como caíste desde o céu, ó estrela da manhã, filha da alva! Como foste cortado por terra, tu que debilitavas as nações! E tu dizias no teu coração: Eu subirei ao céu, acima das estrelas de Deus exaltarei o meu trono, e no monte da congregação me assentarei, aos lados do norte. Subirei sobre as alturas das nuvens, e serei semelhante ao Altíssimo. E contudo levado serás ao inferno, ao mais profundo do abismo.”
Esta interpretação é geralmente atribuída a São Jerônimo, que ao traduzir a Vulgata atribuiu Lúcifer ao anjo caído, embora antes dele esta interpretação não existisse. Atualmente acredita-se que a tal passagem bíblica acima se referisse a arrogância e queda de um rei Babilônico.
O fato é que, oficialmente, a Igreja não atribui a Lúcifer o papel de Diabo, mas apenas o estado de “caído” (Petavius, De Angelis, III, iii, 4) porque a Bíblia simplesmente não é clara o suficiente a esse respeito.
Satã, o “outro”
“Satanás” ou “Satã” é um termo hebraico e quer dizer adversário, opositor, aquele que planeja contra outro. É um termo originado na tradição judaica e geralmente envolvido com a encarnação do mal em religiões ditas monoteístas.
Vale comentar que o cristianismo surgiu em meio ao judaísmo. Cristo, ironicamente, não era cristão e sim judeu. E o judaísmo surgiu em uma pequena tribo perdida no meio do deserto, em meio a um vasto mundo de outras tribos, cada qual com seus deuses. Dessa forma, TODAS as crenças das outras tribos eram opositoras à crença hebraica monoteísta. Posteriormente, a sangrenta perseguição aos cristãos promovida pelos romanos agravou o processo de demonização do outro, e desde então, quando uma religião concorre com o cristianismo, tende a ser vista como um fenômeno que compete contra ele.
E essa ideia de que quem não está com eles é um inimigo persiste até hoje entre as várias denominações cristãs. O termo satanismo foi utilizado pelas religiões abraâmicas (do Deus de Abraão) para designar práticas religiosas que consideravam estar em oposição direta ao seu Deus. Isto é, praticamente TODAS AS OUTRAS 🙁 Isso se chama satanismo simbólico, isto é, tudo que não pertença à crença cristã é, de alguma forma, algum tipo de seita diabólica. Sendo assim, espiritismo, budismo, hinduísmo, umbanda, candomblé, maçonaria, rosacruzes, xamanismo, tarô, astrologia, etc, etc, etc seriam crenças satânicas.
O que É CLARO que não é verdade.
Dessa forma, os pretensos seguidores de Jesus Cristo — um ser nobre, tolerante e humano, que ouvia prostitutas, bandidos, doentes e outros indivíduos “questionáveis” da sociedade — acabam adotando um preconceito automático a tudo que desconhecem e que não faça parte do mesmo grupinho cristão. Sem procurarem ouvir quem rejeitam ou julgam de antemão, numa atitude lamentavelmente intolerante, acabam praticando EXATAMENTE o que Jesus NÃO QUERIA.
Satanismo? Isso existe?
No chamado satanismo tradicional existe de fato um culto ao diabo, o que é por si só ridículo e dispensa comentários mais aprofundados. Pois não sei o que um indivíduo pode querer adorando uma entidade feia, maligna e inexistente.
No satanismo moderno, chamado de satanismo de LaVey, acredite, também não existe diabo. Satanás não é visto como uma entidade viva, e sim como um símbolo de vitalidade, poder e sensualidade. É entendido como a própria natureza humana e como os próprios desejos íntimos do ser humano, os quais são incansavelmente negados nesta atitude hipócrita onipresente na sociedade contemporânea. Eu diria que esse satanismo de LaVey seria algo como um culto ao ego, isto é, um incentivo à aceitação de tudo que nos é natural, ao invés de negar nossa natureza através de sacrifícios, como estimulam as religiões estabelecidas.
Na minha visão, o verdadeiro diabo é o próprio homem, quando tem o seu ego hipertrofiado. Quanto mais egoísta é uma pessoa, mais diabólica ela é. Na crença cristã contemporânea, o diabo é visto como uma entidade invisível que produz dúvida, insegurança e conduz ao erro e à auto-sabotagem através das tentações para o caminho mais fácil e do prazer. E não é o nosso próprio ego a fonte de todas essas posturas mentais?
O mito do “diabo”
“Diabo“, do latim diabolus, por sua vez do grego diábolos, significa “caluniador” ou “acusador” e é o título mais comum atribuído à entidade sobrenatural maligna da mitologia cristã. É considerado a representação do mal em sua forma original do anjo querubim Lúcifer, responsável pela guarda celestial, o qual teria sido expulso dos céus por ter criado uma rebelião de anjos contra Deus com o intuito de tomar-lhe o trono.
Cenário mais medieval, impossível. Lembre-se que durante a Idade Média, época durante a qual a figura do diabo se difundiu, a Europa fervilhava com guerras e mais guerras de grupos querendo tomar o trono de outros grupos.
Com uma aparência ainda desconhecida, muitas foram as tentativas de reproduzir a aparência do diabo. A mais popular o levaria a ter uma cor vermelha, com feições humanas, mas com chifres e patas de um fauno, rabo pontiagudo e um tridente na mão (em uma alusão provável a Netuno, o deus dos mares). Acredita-se que esta imagem foi criada pela Igreja Católica como forma de convencer os pagãos de que adoravam entidades hediondas. Para isso, apropriou-se de um elemento de cada deus pagão e reuniu-os numa única figura amedrontadora, para que toda vez que um de seus fiéis olhasse para uma divindade sentisse medo, associando-a ao príncipe das trevas. Mas…
… por que esse empenho todo?
Quando precisamos vender uma solução, precisamos antes nos certificarmos se as pessoas têm um problema a ser solucionado. Se este problema não existe, há que se criá-lo. O pessoal do marketing sabe bem disso. Ora, se não houvesse pelo que temer, por que as pessoas desejariam a salvação de Cristo, para a qual a Igreja se acreditava ser o único caminho? (O conceito de reencarnação também foi suprimido pela igreja por atrapalhar suas intenções)
O diabo na Bíblia
Ao contrário do Novo Testamento, no Antigo Testamento o conceito do mal não existe de forma personificada e autônoma em relação a Deus. No Antigo Testamento há uma visão monista na qual a soberania absoluta de Deus não é ofuscada por nada. Deus é o autor de todas as coisas, sejam elas compreendidas como boas ou más pelo ser humano. Ainda assim Deus jamais era o causador do mal em um sentido moral. No caso o mal proveniente de Deus era conseqüência da desobediência do homem, o que tornava a personalidade divina temperamental e vingativa. No Antigo Testamento existem apenas quatro referências ao Diabo como sendo um ser sobrenatural e a falta de um dualismo explícito entre o bem e o mal explica-se pela exclusividade de Deus sobre sua criação.
Entre os séculos VI e I a.C., influenciada pela cultura grega, então dominante, a cultura hebraica viu uma ruptura na personalidade de Deus, o qual tornou-se um agente exclusivamente benigno, deixando de agir de forma eventualmente maléfica. Houve uma quebra, um deslocamento da visão monista para uma visão dualista. Na concepção dualista, havia um Deus benevolente e OUTRO deus malévolo representado na figura de satanás. No Novo Testamento, os termos diabo e satanás são citados repetidas vezes e indicam um ser autônomo em relação a Deus e que a Ele se opõe, fundamentando a visão dualista entre o bem e o mal.
Assim se vê que, inesperadamente, o Antigo Testamento se aproxima bastante das modernas visões espiritualistas que alegam que só há um princípio divino absoluto e benevolente no universo, e que o mal seria um afastamento do sujeito em relação a esse princípio.
A melhor forma de compreender essa questão, na minha opinião, é associar Deus, ou o bem, à luz, e o mal, ou o diabo, às trevas. O que são as trevas? A ausência de luz, certo? De modo que as trevas não existem. Da mesma forma entendo o mal. O mal não existe em si e é a ausência do bem; mais profundamente, é a ausência de Deus.
A Seicho-no-ie oferece um ponto de vista belíssimo a esse respeito ao dizer que TUDO é Deus e vem de Deus (onipresença, onipotência, onisciência) e que o Homem é filho de Deus, portanto, traz consigo a centelha divina do Criador (imagem e semelhança). Afirma desse modo que as desventuras do homem se devem em grande parte ao afastamento de Deus e ao esquecimento de sua natureza divina.
Demônio
“Demônio” do latim daemon quer dizer “espirito”. Originou-se do grego daimon que quer dizer “divindade, poder divino, deus de menor importância, espírito-guia, deidade tutelar”.
A conotação negativa dessa palavra se prende aos primeiros textos cristãos, onde era usada para designar “um deus dos pagãos, um espírito impuro”. Não eram raras apropriações desse tipo, com a finalidade de combater as antigas religiões pagãs. Um demônio é, na tradição cristã-judaica, um anjo que se rebelou contra Deus e que passou a lutar pela perdição da humanidade.
Na antiguidade, contudo, antes de ser corrompido, o termo tinha outra conotação: se referia a um gênio que inspirava os indivíduos. Na mitologia romana, cada homem tinha um gênio e cada mulher uma juno, os quais concediam intelecto e grande talento.
Só existem entidades espirituais boazinhas?
Não necessariamente. A Doutrina Espírita, aquela que na minha opinião trata do assunto da forma mais prudente e razoável, afirma que a figura do diabo constitui uma personificação do mal; é um ser alegórico, resumindo em si todos os vícios do espírito humano. Segundo o Espiritismo, não há demônio no sentido de seres criados para o mal e eternamente desgraçados, e sim espíritos em estágio primário ou estacionário de evolução, que se distanciaram, por livre escolha, dos princípios divinos da criação. Sim, eles podem ser tão perversos quanto um diabo, e podem realmente influenciar para o mal os humanos encarnados que tenham uma frequência espiritual baixa semelhante a deles, mas são tão humanos quanto eu ou você. E podem, todos, a qualquer momento, decidirem pelo bem através do auto-aperfeiçoamento por seus esforços e pelo poder de sua vontade.
Gostando você ou não da filosofia espírita, é notório que ela realmente soa mais moderada, sucinta, e sugere um Deus verdadeiramente inteligente, generoso, misericordioso, paciente, amoroso, etc, pois nos confere inteiro livre-arbítrio e nunca nos condena eternamente ao inferno, nem nos larga à mercê de uma entidade diabólica, apenas deixa que experimentemos os resultados de nossas ações através das leis do carma. Plantou, colheu! No final, quando acordarmos para o bem, Ele SEMPRE estará lá para nos acolher novamente.
E o mal, existe? O conceito de mal é relativo. Ele depende do ponto de vista de quem julga determinado ato como mal. Juízes sabem muito bem que em uma mesa de audiência onde duas partes disputam, o mal sempre está do lado de lá, nunca do lado de cá 🙂
E a Igreja Católica é do mal?
Com base em tudo que foi comentado, vemos que a maior especialidade de alguns pensadores católicos foi transformar o que era inofensivo em algo perigoso. O mundo ficou mais assombrado depois deles, lamentavelmente.
Como a Igreja Católica reinou soberana na Europa desde a queda de Roma durante os anos 400, até 1517 quando Martinho Lutero contestou muitas posturas questionáveis que ela vinha adotando, então é sobre ela que recai a responsabilidade pela criação ou manutenção de todas essas entidades imaginárias, na medida em que favoreciam a frequência às igrejas pelos fiéis motivados pelo temor da perdição eterna. E mesmo as igrejas protestantes continuaram adotando a figura do diabo como forma de convencimento pelo temor, como ocorre até hoje de forma bastante intensa. É sabido que em muitas igrejas evangélicas (eu disse muitas, não todas) fala-se mais no diabo do que em Deus.
Particularmente, não acredito que toda aquela postura dos pensadores católicos fosse preponderantemente má. O que acontecia é que eles eram (e são ainda) tão convictos a respeito da correção que a igreja representava para a conduta humana e do quão certo ela era como caminho para conduzir as pessoas à salvação, e também do bem absoluto que a igreja constituía como representante direta do que se tinha como o único Deus verdadeiro, ufa… que acabavam por realmente crer que tudo que estava fora dela era maligno ou na melhor das hipóteses, inútil. Eram como um vendedor que acredita tanto em seu produto que não se importa de desqualificar os concorrentes com algumas mentirinhas bobinhas.
A maior preocupação daqueles pensadores era salvar as pessoas (as quais eles tinham como perdidas) e não estudar sobre a natureza filosófica das crenças alheias. Não havia uma maldade intrínseca na atitude deles, muito embora essa atitude tenha prejudicado deveras a vida de milhares, ou milhões de pessoas que estavam fora da crença cristã, tocando suas vidas pacificamente. As cruzadas e a santa inquisição estão aí como exemplos históricos de como não se deve praticar a evangelização 🙁
Hoje vemos que mesmo apesar de alguns problemas, a Igreja, não só católica como também todas as igrejas cristãs de modo geral fazem mais bem do que mal à sociedade 🙂 Além de representarem um modelo ético a ser seguido por multidões (é melhor um modelo ético do tipo bem x mal do que nenhum) as quais realmente PRECISAM dessa orientação, também formam um exército de caridade que faz o bem mundo afora de modo quase anônimo.
Menos mal, nunca é tarde para se reparar nossos erros.
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Saiba mais sobre a riquíssima Mitologia Cristã.
John de Luca
16 de junho de 2012 as 2:17
Nooosa! Fiquei até com a impressão q vc conseguiu esgotar o assunto, embora o tema seja de fato rico e inesgotável. Parabéns! !!
Fortes
28 de junho de 2012 as 12:59
Foi uma boa pesquisa, que claramente favoreceu as suas crenças. Mas só que há muito a falar a respeito disso, e existe com certeza verdades, deveras profunda, que nos dá uma visão bastante esclarecedora deste tema. Essa pesquisa apenas favorece uma crença, A do Espiritismo, e portanto está bastante sufocada, e deturpada e cheia de contradições. para além disso, deixas-te mais a sua opinião pessoal sobre-sair em vez dos factos históricos, e isso acontece muitas vezes.
Eu também acredito q Deus é verdadeiramente inteligente, generoso, misericordioso, paciente, amoroso, etc, pois nos confere inteiro livre-arbítrio e nunca nos condena eternamente ao inferno, nem nos larga à mercê de uma entidade diabólica, antes ele cuida pq é pai. Por isso não precisamos recorrer a Espiritismo para encontrar a verdade, até pq foi ele mesmo quem condenou essas práticas de modo explicito na sua palavra.
Ronaud Pereira
28 de junho de 2012 as 13:41
Fortes, obrigado por seu comentário. Acho que você complementou bem o texto.
Deixe-me fazer apenas uma observação: Sim, eu utilizo a visão espírita como conclusão para o tema, por me soar a mais sóbria e compreensível ao leigo. Porém veja que TODAS as informações mitológicas sobre a entidade em questão que utilizei foi retirada da wikipedia. Não “inventei” nada. A não ser que os autores dos respectivos artigos na wikipedia sejam espíritas também rs o que sabemos que não é verdade; são sim estudiosos de mitologia que contribuíram com seus conhecimentos.
Mas entendo você e concordo. Realmente não precisamos do espiritismo para percebermos que a existência de uma entidade diabólica e de uma condenação eterna não condizem com um Deus realmente supremo e misericordioso.
Um abraço!