Há muitos anos atrás precisei ir na Celesc, a empresa fornecedora de energia elétrica de Santa Catarina, para resolver algum problema burocrático qualquer.
Muito ironicamente, naquele dia, por aquelas horas, houve queda no fornecimento, e o escritório da Companhia de Energia Elétrica do Estado estava… SEM energia elétrica!
Era uma tarde de verão, o clima estava abafado.
Era aquela tarde típica de fevereiro, em que ventiladores, se houvesse ali energia que lhes impulsionasse, ventilariam o próprio ar quente.
Uma funcionária saiu de seu lugar e abriu todas as janelas. As longas e brancas cortinas, no entanto, permaneciam caídas.
Nenhum vento.
Muito esparsamente um lufar de uma brisa morna e cansada movimentava as cortinas, inflando-as sem vontade.
Nós, os clientes aguardando atendimento, derretíamos em suor e esmorecíamos sob o cansaço que só o calor consegue impingir sem que tenhamos dado um passo sequer.
A energia elétrica nos afastou da natureza ao ponto em que nos desabituamos a certas condições mais extremas. A raça humana enfrenta verões escaldantes há milênios, porém basta menos de um século com as facilidades elétricas, para desistirmos da vida quando elas falham.
Aqui onde moro, as quedas de energia são frequentes, e às vezes, prolongadas; quase sempre a noite. E é nessas horas de escuridão total que vizinhos que nunca se olham enfim se reúnem na rua, conversando, rindo, se apoiando, sentindo-se quase amigos. Exatamente, veja só, como nossos ancestrais fizeram por milênios, passando as noites em volta das fogueiras.
Ali, na sala da Celesc, depois de juntar todas as suas forças, o vento entrou numa rajada quente pela sala com as portas e janelas escancaradas, e movimentou vagarosamente uma porta entreaberta daquele interior.
O ranger vagaroso da porta me levou até alguma tarde qualquer de algum verão da minha infância, na casa do meu avô, na infernal cidade de Joinville.
Joinville, assim como as escaldantes cidades do Rio de Janeiro e Porto Alegre, também se espreme entre uma baía – a baía da Babitonga – e a cadeia de montanhas da Serra Dona Francisca, que por ali segura todo o calor.
Lembro de alguns dias de verão passados na casa dos meus avós, casa antiga, de madeira, sem ar-condicionado – que era artigo de luxo na década de 80 – com as portas e janelas escancaradas, de dia e de noite, suplicantes por um gentil refresco de um vento qualquer.
Em alguns momentos, os ventos se animavam e convidavam as cortinas para dançar, enquanto as portas, apáticas, murmuravam seus infortúnios rangendo pra lá e pra cá, conforme as brisas mornas e indecisas iam e vinham.
Eu não suporto calor, dias quentes, o próprio verão; com exceção talvez de suas noites, as noites de verão, certamente porque nesse período as temperaturas ficam agradáveis; as brisas noturnas refrescam e compartilham um tipo de alegria que dá impressão – em pleno verão – que vale a pena viver. Se a noite é uma criança, então essa noite é de verão, porque, reconheço, as noites de inverno nos afundam em desolação.
Mas durante os dias, além de suar demais, o calor me atinge algum ponto vital, que em dias quentes eu não consigo nem pensar direito; ar-condicionado para mim é item vital, de primeira necessidade, em casa e no carro.
Depois de ler o livro O Grande Gatsby, e re-assistir ao filme por várias vezes, notei que a estória se desenrola num verão; que para uma cidade fria como Nova York (e toda a Europa), o verão tem uma conotação ainda mais positiva do que nos trópicos, embora propicie algumas tragédias, como Fitzgerald nos ilustra em sua triste estória.
Vendo e revendo esta cena acima em que Nick reencontra Daisy em uma tarde de verão de 1922, em sua sala repleta de cortinas esvoaçantes em janelas altas e abertas para receber todo o vento possível, passei a observar com frequência como eram os verões anteriores à era dos ares-condicionados. Como no episódio da Celesc – o qual não sei por que ficou em minha memória, talvez porque aquele cenário de irremediável calor me relembrou justamente minhas tardes de infância na casa de meu avô, em que, apesar de criança, já notava os prenúncios da minha constante dificuldade com temperaturas altas.
Algo, no entanto, me atrai no calor, seja na cena do filme, seja nas minhas memórias. É a letargia, o ritmo lento de uma tarde de verão. Naquelas épocas não nos restava nada a não ser suportar a atmosfera escaldante daquelas tardes, com janelas abertas, ventiladores soprando ar quente, e antes ainda, com leques e uma arquitetura autenticamente brasileira, especialmente designada para o nosso clima, com pé-direito, portas e janelas altos, às vezes com aberturas na parte superior permanentemente abertas protegidas por grades, para o ar quente do interior ir saindo espontaneamente, além dos toldos e venezianas utilizados para bloquear o sol dos edifícios, e das sombrinhas para proteger a pele das moças.
A eletricidade, o ar-condicionado, as comunicações instantâneas, aliados a uma arquitetura moderna que se desadaptou às leis naturais do calor, nos isolaram em cubículos, nos mantendo permanentemente ligados, ansiosos.
Não por acaso as férias costumam acontecer, desde sempre, nos verões. Verão é feito pra descansar; para sermos menos formigas, e mais cigarras.
O cansaço emocional decorrente desta pandemia – virótica e histérica – soma-se ao já natural desgaste costumeiro com o qual chegamos em todo fim de ano. Para nossa sanidade mental, especialmente neste verão que se avizinha, além de eventualmente desligarmos o celular, talvez devêssemos também desligar o ar-condicionado e sair – pra varanda, pra sacada, para o parque, para a praia – e sucumbirmos deliberadamente ao relaxante torpor das tardes tórridas que teremos pela frente.
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