O texto abaixo é parte do prólogo do livro Metrópole à Beira-mar, de Ruy Castro. O prólogo inteiro está disponível neste pdf no site da Companhia das Letras. É uma breve história da Gripe Espanhola no Brasil.
Iniciei a leitura deste livro há uma semana e o relato da chegada da Gripe Espanhola ao Brasil e o modo como ela sucedeu por aqui me espantou, pela similaridade com o que estamos vivemos atualmente em relação à pandemia do Corona-vírus, incluindo aí a 2ª onda pela qual estamos passando.
O fato deste livro ter sido publicado em 2019 torna o relato tão inquestionável quanto oportuno.
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Em meados de 1918, o governo brasileiro finalmente tomou as primeiras providências (em relação à 1ª Guerra). Enviou para o front francês, como estagiários, 28 jovens oficiais chefiados por um general chamado, com involuntário humor, Napoleão. Despachou também uma missão médica para implantar um “Hospital Brasileiro” perto de Paris, formada por 86 médicos, entre civis e militares, aos quais se juntaram seis que já atuavam na França. E, sob orientação da esquadra inglesa, mandou dois cruzadores, quatro destróieres, um rebocador e um navio de apoio para colaborar na patrulha do triângulo Dakar-Cabo Verde-Gibraltar, no Atlântico Sul. Ao chegarem às proximidades da costa africana, os navios foram alvo de torpedos de um submarino alemão que não chegaram a atingi-los. Dias depois, a frota brasileira bombardeou um cardume de toninhas julgando ser o submarino. Em fins de agosto, a frota fundeou em Dakar e, então, deu-se a tragédia — sua tripulação se expôs a um novo inimigo surgido nos últimos meses do conflito: uma estranha gripe. Dos cerca de 1200 homens nos seis navios, mil caíram doentes e 156 morreram em questão de dias.
Ainda não se sabia, mas era uma epidemia que, em poucos meses de 1918, atingiria um quinto da população mundial e mataria o que hoje se estima entre 20 milhões e 50 milhões de pessoas. Chamaram-na de Gripe Espanhola. Nunca houve igual na história e não poderia ter acontecido em pior momento.
Passados quase quatro anos de combate, o mundo já estava farto da guerra, exaurido de recursos e sem saber por que continuava lutando. Em todas as frentes, soldados desertavam aos milhares — russos, franceses, italianos, turcos, búlgaros, tchecos, austríacos. Os próprios generais alemães sonhavam com uma impossível “paz sem derrota”. E, mesmo entre os vitoriosos da Europa, o futuro que os esperava eram cidades devastadas, mortos a enterrar e um endividamento com que nunca haviam contado. Os próprios símbolos da guerra tinham se tornado intoleráveis. Em Londres, ninguém mais aguentava ouvir “It’s a Long, Long Way to Tipperary”, a marcha de Jack Judge e Harry Williams que animara os ingleses a lutar. Em Paris, o mesmo a respeito da vibrante “La Madelon”, de Camille Robert e Louis Bousquet. O cessar-fogo, quando viesse, não seria recebido com exultação, mas com alívio.
E, então, com a guerra ainda nos estertores, a gripe se instalou. Nunca se soube ao certo o que a provocou — a ciência já suspeitava da existência de algo novo, chamado “vírus”, mas seus microscópios não tinham como alcançá-los. Só se sabe que a Espanhola não veio da Espanha. Deram-lhe esse nome porque, ao contrário dos outros países europeus, que a contraíram quase ao mesmo tempo, a Espanha, neutra na guerra, não escondeu seus primeiros casos — o mundo logo ficou sabendo que um terço da população de Madri adoecera, inclusive o rei Alphonso XIII. Na verdade, a epidemia parece ter saído dos Estados Unidos, mais exatamente dos estados de Kansas e Nova York, e sido levada para a Europa pelos soldados americanos, embarcados naquele abril de 1918. Como atingia primeiro as zonas litorâneas, presume-se que foi transmitida por marinheiros em viagem, contaminando as tropas em terra e espalhando-se pelas populações civis. Logo chegaria à Índia, ao Sudeste da Ásia, à China, ao Japão e às Américas Central e do Sul. E antes fosse apenas uma gripe.
Começava por uma aguda dor de cabeça, seguida de calafrios que nenhum cobertor conseguia aplacar. Em seguida vinham as dores em todos os ossos do corpo, a diarreia e a letargia. Devido à oxigenação insuficiente, o rosto ficava roxo ou azulado e os pés, escuros — era a cianose. Sucediam-se sufocações e espasmos de sangue ao tossir — eram os pulmões, cheios de um líquido avermelhado. Em três dias, sobrevinha a morte por parada respiratória. Seus alvos favoritos eram as crianças com menos de cinco anos, os adultos de vinte a quarenta e acima de setenta. De abril a julho, houvera um primeiro surto, comparativamente brando, que se limitou à Europa e, de repente, desaparecera. Mas, em setembro, a praga voltou com força total e se disseminou pelo globo, já com o nome de Espanhola.
Na França, duas de suas primeiras vítimas foram o dramaturgo Edmond Rostand, autor de Cyrano de Bergerac, e o poeta Guillaume Apollinaire. Na Áustria, Sophie, filha de Sigmund Freud, e o mestre da Secessão, o pintor Egon Schiele. Na Alemanha, o economista Max Weber. Em Portugal, as crianças Francisco e Jacinta, do famoso “milagre de Fátima”. Nos Estados Unidos, Rose Cleveland, que tinha sido primeira-dama do país; Henry Ragas, pianista da Original Dixieland Jass Band, que, apenas um ano antes, gravara o primeiro disco de jazz da história; e os irmãos John e Horace Dodge, tubarões da indústria automobilística americana. A Espanhola não respeitava talentos, títulos nem contas bancárias.
O Brasil de 1918 não estava preparado para recebê-la. Ninguém estava. Ela chegou ao Rio no dia 16 de setembro, quando atracou no porto o correio britânico Demerara, vindo de Lisboa, mas com uma escala fatal em Dakar. A bordo havia duzentos tripulantes em vários estágios da doença e outros só aparentemente saudáveis. A gripe desceu do navio nos pés dos marujos que se espalharam pela praça Mauá, rapazes que invadiram as gafieiras e beijaram na boca as mulheres que lhes abriram os braços. Em dias, os primeiros sintomas se fizeram sentir. As pessoas começaram a passar mal, a cair doentes e a morrer em questão de horas.
O alerta demorou a ser dado. Numa cultura em que o quinino era visto, até pelos médicos, como um santo remédio, o povo depositou suas esperanças em destronca-peitos, purgantes e preparados à base de alfazema, limão, coco, cebola, vinho do Porto, sal de azedas, cachaça e fumo de rolo — o que, naturalmente, não diminuiu o índice de mortalidade. Uma instituição fornecia canja de galinha contra a gripe. Um laboratório saiu-se com um remédio homeopático, Grippina, “fórmula do dr. Alberto Seabra”. A própria Bayer passou a oferecer a aspirina Fenacetina, anunciada como “tiro e queda contra a influenza”, e prometendo “bem-estar com a rapidez de um raio”.
As notícias viajavam a pé e não se percebeu de imediato que era uma epidemia. No começo, o carioca ainda brincou, atribuindo a doença a uma arma secreta dos alemães, embutida nas salsichas. Mas, quando se descobriu que o número de mortes no Rio estava chegando a centenas por dia, viu-se que não havia motivo para rir. Outras cidades litorâneas brasileiras seriam muito atingidas, como Recife, Salvador e Santos, mas nenhuma com a intensidade do Rio.
A morte em massa começou a gerar consequências que ninguém podia controlar. Sem leitos suficientes nos hospitais da cidade, os doentes eram amontoados no chão das enfermarias e nos corredores. Muitos morriam antes de ser atendidos. Os hospitais foram fechados às visitas e, nos enterros, só se permitia a presença dos mais próximos. Mas logo deixaria de haver espaço para condolências. Em pouco tempo, os velhos rituais — velório, cortejo e sepultamento — ficaram impraticáveis. As casas funerárias passaram a não dar conta. Viam-se carros transportando caixões com tábuas mal pregadas, indicando que tinham sido feitos às pressas. Então, começou a faltar madeira para os caixões e gente para fabricá-los. As pessoas morriam e seus corpos ficavam nas portas das casas, esperando pelos caminhões e carroças que deveriam levá-los. Os motoristas e carroceiros os recolhiam na calçada e os atiravam nas caçambas como se fossem sacos de areia. Às vezes, descobria-se que alguém dado como morto ainda respirava — era liquidado ali mesmo, a golpes de pá, antes de o veículo sair, mas houve casos de enterrados vivos. Nos necrotérios, os corpos jaziam empilhados por dias sobre as mesas de mármore ou no chão. Os recolhidos na rua, sem identificação, eram despejados em valas comuns ou incendiados. Os coveiros também começaram a morrer. O Exército e a Cruz Vermelha os substituíram como voluntários e, por toda a cidade, armaram-se hospitais emergenciais e postos de atendimento. Deixou de haver remédios.
Através dos jornais, que continuaram a circular mesmo que reduzidos a poucas páginas, a população era aconselhada a evitar os trens, bondes e ônibus — que andasse a pé, se pudesse. Rogava-se que ninguém tossisse, espirrasse, cuspisse ou se assoasse em público — inútil, porque, já então, a cidade era uma tosse em uníssono. As aglomerações foram desestimuladas e, com isso, a vida desapareceu: fábricas, lojas, escolas, teatros, cinemas, concertos, restaurantes, bares, tribunais, clubes, associações, até bordéis, tudo fechou. A avenida Rio Branco, a rua do Ouvidor, a praça Tiradentes, pareciam cidades-fantasma. O movimento do porto parou — os navios que chegavam ficavam algumas horas no cais e iam embora, por falta de gente para descarregá-los. Curiosamente, as igrejas pareciam imunes ao perigo. Nelas, rezava-se pelos parentes mortos e também ao padroeiro, são Sebastião, para “levar a gripe embora” — assim como, na invasão francesa de 1711, apelara-se (em vão) para o santo contra o corsário Duguay-Trouin, que tomara a cidade.
Da rua, no começo, ainda se viam pelas janelas os mortos em câmara-ardente. Mas logo as casas passaram a manter as portas e janelas fechadas. Temiam-se as emanações que vinham de fora, embora o inimigo já estivesse lá dentro. Outra visão impressionante era a das famílias vestidas de preto pela morte de seus parentes — foi o apogeu da Casa das Fazendas Pretas, loja no centro da cidade que garantia “lutos elegantes e completos em doze horas” — tingimento, confecção etc. Mas o luto, na Espanhola, também logo perdeu o sentido, inclusive entre as funcionárias da Fazendas Pretas, e qualquer cor passou a representá-lo.
Os doentes eram tantos que muitas atividades básicas sofreram por não haver quem as desempenhasse: vender comida, transportar produtos, aplicar injeção. Sem as telefonistas para lhes dar linha, os telefones ficaram mudos. E veio a inflação: um ovo passou a custar o preço de uma galinha; um pão, o de uma cesta inteira. Quando a falta de leite, carne e ovos ficou geral, começaram os saques aos açougues e armazéns — as pessoas, desesperadas e tossindo, depenavam os estabelecimentos. A polícia passou a garantir que, em cada bairro, uma farmácia e uma padaria se mantivessem abertas. Era o máximo que se podia querer.
Pedro Nava, futuro médico e escritor, tinha então quinze anos e morava com seus pais na Tijuca. Num de seus livros, ele descreveria uma cena impressionante que vira na rua: a da criança esfomeada chupando os peitos da mãe morta e já em decomposição. Nava falaria ainda de quando, à falta de coveiros, os presidiários foram soltos e intimados a ajudar. Alguns, antes dos sepultamentos, cortavam os dedos ou orelhas de defuntos para se apossar de anéis e brincos esquecidos, e — o horror, o horror! — curravam os cadáveres femininos mais frescos. Mas Nava contaria também a bonita história de José Luiz Cordeiro, o Jamanta, enteado do dramaturgo Arthur Azevedo e funcionário da delegacia da rua da Relação, na Lapa. Por algum motivo, Jamanta sabia dirigir bondes e, quando começaram a faltar condutores, pediu que lhe confiassem um bonde-bagageiro acoplado a dois “taiobas”, que eram os bondes de carga. E saiu com eles pela cidade, do Centro aos bairros das zonas Norte e Sul, recolhendo os mortos que as famílias lhe quisessem entregar, com ou sem caixão. Quando já tinha uma quantidade apreciável, ia despejando-os no Caju ou no São João Batista. Era um bonde-fantasma — macabro, mas poético.
A Espanhola não distinguia classes sociais. Levou gente entre os pobres, os remediados e até de famílias importantes, como os Nabuco, os Penido e os Mello Franco. Dois dos irmãos Lage, Jorge e Antonio, que dominavam a navegação marítima no Brasil com seus “itas”, morreram. O casal Eugenia e Alvaro Moreyra também perdeu dois filhos. O estadista Afranio de Mello Franco perdeu sua mulher, Silvia, e um filho, Cesario. O craque Belfort Duarte, jogador do América e símbolo da disciplina no futebol, igualmente caiu — fora o inventor do “chute à Belfort”, um pé chutando o ar e o outro, a bola (o futuro sem-pulo). A cafetina Alice Cavalo de Pau, imperatriz dos bordéis da Lapa, idem, se foi. O próprio poeta Olavo Bilac contraiu o mal, de forma benigna, mas isso contribuiu para sua grave condição cardíaca, da qual ele morreria em dezembro. Segundo o médico Miguel Couto, 600 mil habitantes foram contagiados — mais de metade da população. Foi um milagre que só uma fração tenha morrido.
De repente, em fins de outubro — 15 mil mortes depois —, a Espanhola pareceu amainar. Os infectados se recuperavam, os doentes pararam de morrer. Aos poucos, as portas das casas começaram a se abrir. A cidade voltava à vida. Os caixeiros reapareceram atrás dos balcões. O comércio retomou seu movimento e o dinheiro, inútil diante da morte, recuperou seu antigo valor. Os teatros reabriram e tinham agora filas nas portas. Os navios voltaram a parar no Rio. Das janelas, ouviam-se tímidos sons de pianos. Algumas moças saíram às ruas. Assim como surgira, a gripe fora embora. Não por alguma poção ou magia, mas porque as pessoas haviam ficado imunes.
E, com a Espanhola, foi-se também a Guerra. No dia 11 de novembro, dentro de um vagão-restaurante à margem do rio Oise, afluente do Sena, os aliados e a Alemanha assinaram o Armistício. A notícia chegou até nós pelo cabo submarino. O importante é que o Brasil, modestamente, estava entre os vitoriosos. Não tendo a quem vender café durante o conflito, diversificara seu setor agrícola. E, como não tinha de quem comprar manufaturas, começara a produzi-las aqui mesmo, com o que, em poucos anos, saltou de um país de enxadas e pés descalços para uma incipiente sociedade de máquinas e macacões. Subitamente, fabricávamos turbinas, elevadores, vagões ferroviários, tamancos, vasos sanitários, marmelada em lata, balanças, gravatas e cavaquinhos. Para um país em que, até então, quase tudo vinha da Inglaterra, de Portugal ou da França, aquilo era uma revolução. Chaminés surgiram no horizonte e nasceu um embrião de classe operária, formada, em boa parte, por imigrantes recém-chegados. E, de uma nova massa de funcionários públicos, brotou uma classe média.
Poucas semanas antes, estávamos a milímetros da morte. Agora já eram as vésperas de 1919. Quem sobreviveu não perderia por nada aquele Carnaval.
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